A última batalha

11th Hour sendo cumprimentado pelo Holcim PRB ao chegar a Gênova. Foto: Sailing Energy

Entre protestos

e orcas

Por Roberto Negraes

Etapa final da The Ocean Race 2023 foi marcada por colisões, protestos e ataques de orcas

Embora tenha abandonado oficialmente a sétima e última etapa em razão de um choque com o concorrente Guyot environnement (Europa), o veleiro americano Malama recebeu quatro pontos de bonificação e a equipe 11th Hour (EUA) terminou como a grande campeã da The Ocean Race 2022-23.

Desta forma, Charlie Enright tornou-se o primeiro skipper estadunidense a levar uma equipe do seu país à vitória nos 50 anos de história da The Ocean Race (antes denominada Whitbread e, depois, Volvo Ocean Race). Esta conquista de Enright aconteceu em sua terceira tentativa de ganhar uma regata de volta ao mundo. Já o navegador da 11th Hour Racing Team, o inglês Simon Fisher, comemorou sua segunda vitória nesta tradicional regata (a primeira foi na edição 2014-15), e declarou: “Já fiz esta volta ao mundo seis vezes, consumindo quase 20 anos da minha vida. Vencer é importante e é o que todos nós buscamos, mas, pessoalmente, valorizo não apenas a vitória, mas fazer as coisas da maneira certa”.

11th Hour Racing Team comemora a chegada a Gênova como campeão da The Ocean Race 2022-23. Foto: Sailing Energy

Um acidente decisivo

O trecho final da The Ocean Race começou em Haia (Holanda), no dia 15 de junho, tendo como destino a Gênova (Itália). Os barcos largaram sem problemas, mas após 15 minutos ocorreu um incidente raro em regatas oceânicas. O skipper Benjamim Dutreux, do Guyot environnement, não viu o Malama, do 11th Hour Racing Team, e o bico de proa do seu veleiro atingiu pela alheta o competidor americano, que até aquele momento era o líder da disputa depois das seis primeiras etapas.

Ambos os barcos tiveram de retornar ao porto, e, ao atracarem, ficou claro que a equipe 11th Hour demoraria alguns dias para reparar os danos no seu barco, que foram consideráveis, para desespero do skipper Charles Enright, que disse ter tentado evitar o acidente, mas quando percebeu que o Guyot não estava mudando de curso, era tarde demais. Constrangido, Benjamin Dutreux assumiu a culpa pelo desastre, e sua equipe anunciou que se retiraria da etapa.

O 11th Hour Racing Team decidiu colocar seu barco em condições de navegar e completar a volta ao mundo, mesmo partindo atrasado, mas abandonar a etapa lhe dava direito de entrar com o pedido de reparação ao júri internacional da Federação Internacional de Vela (World Sailing).

Então, a equipe abandonou oficialmente a sétima etapa, terminou o trajeto após os reparos em Haia e apresentou um protesto com base na regra 62.1, que, resumidamente, estabelece que uma comissão de protestos pode considerar uma reparação baseada em reclamação na possibilidade de que a pontuação ou posição de um barco em uma regata ou série tenha sido ou possa ser, sem culpa própria, piorada significativamente por lesão ou dano físico devido à ação de outro barco infringindo uma regra.

O júri da World Sailing concedeu ao 11th Hour Racing Team quatro pontos de recuperação — correspondentes à média de finalizações no restante da The Ocean Race. Isso foi o suficiente para saltar três pontos à frente do rival Team Holcim-PRB (Suíça), que terminou como segundo colocado geral. A equipe suíça tentou um recurso contra a decisão, mas foi negado.

Um troféu à parte para os VO65

Na classe VO65, que disputou à parte o prêmio denominado VO65 Sprint —os VO65 não deram a volta ao mundo, competindo somente nas três etapas europeias da The Ocean Race—, venceu o barco do time polonês Wind Whisper, que teve uma grande participação e concluiu a última etapa, no dia 26 de junho, cem milhas na frente de todos os demais barcos, inclusive os da classe Imoca.

Com o skipper espanhol Pablo Arrarte impossibilitado de participar da etapa final, coube ao neo-zelandês Daryl Wislang assumir o comando do veleiro, que cruzou a linha de chegada com vento de apenas 6 nós (11 km/h), completando o percurso entre Haia e Gênova, em 10 dias 23 horas 17 minutos e 52 segundos.

O Wind Whisper também ganhou o prêmio da Fundação Vasco da Gama Mirpuri como o primeiro barco a passar a linha de 37 graus de latitude norte (extremo sul de Portugal). A partir daí, com ventos mais fortes, a equipe nunca se preocupou em olhar para trás, e com uma margem enorme sobre os demais atravessou, à noite, o Estreito de Gibraltar, onde orcas atacariam alguns outros participantes. “Acho que as orcas estavam dormindo quando passamos pelo Estreito”, disse, rindo, um tripulante. “Conseguimos escapar delas, então tivemos sorte de passar ilesos”, comemorou.

O segundo VO65 a chegar foi o Jajo (Holanda), 24 horas após o Wind Whisper e apenas alguns minutos à frente do classe Imoca Malizia (Alemanha). O pódio da classe nesta etapa foi completado pelo Viva México (México), que obteve seu melhor resultado no VO65 Sprint sob brisa leve. Atrás deles, os barcos Mirpuri / Trifork (Dinamarca/Portugal) e Austrian Ocean Racing - Team Genova (Áustria/Itália) continuavam muito lentamente em direção a Gênova. Quando o vento diminuiu quase a ponto de desaparecer, a Comissão de Regata contatou os dois barcos e propôs encurtar o percurso e finalizá-lo no local onde estavam, o que foi aceito, deixando o Austrian Ocean Racing - Team Genova em quarto lugar e Mirpuri/Trifork em quinto lugar para a etapa 3.

A chegada dos Imoca

Os veleiros da classe Imoca terminaram a regata na terça-feira, dia 27 de junho. O final foi emocionante e surpreendente, por conta dos ventos extremamente fracos no momento em se aproximavam da linha de chegada. Em função das pequenas variações do vento, o até então líder Holcim-PRB perdeu o lugar para o Malizia nas derradeiras horas da regata.

Após a chegada do Malizia, o vento quase parou completamente, deixando os skippers Paul Meilhat, do barco francês Biotherm, e Benjamin Schwartz (Holcim-PRB) numa disputa indefinida a baixa velocidade e muito esforço para alcançarem a linha de chegada.

Foi o Biotherm, enfim, que conseguiu o segundo lugar da etapa 7. Ao Holcim-PRB, coube a terceira posição. “Biotherm e Malizia conseguiram escapar e aqui estamos. Liderar a corrida nos últimos 12 dias e terminar na última posição do grupo é um pouco decepcionante”, lamentou Schwartz.

Como foi a etapa 7

Logo depois da largada, os barcos enfrentaram inesperadas condições de ventos extremamente leves e desafiadores para sair do Canal da Mancha e iniciar um percurso em águas mais abertas na Baía da Biscaia.

O VO 65 Jajo começou na liderança, à frente do Mirpuri-Trifork e do Wind Whisper, mas, com as velocidades da flotilha abaixo de 4 nós (7,4 km/h) e distância do primeiro ao quinto barco de apenas 15 milhas (27 km), nada estava definido.

A classe Imoca estava na mesma situação, mas o skipper Benjamin Schwartz (revezando com Kevin Escoffier), do Holcim PRB, estava otimista, pois o barco já abria 15 milhas sobre o Biotherm e 25 milhas (46 km) para o Malizia. O otimismo terminou quando chegaram à Baía da Biscaia, pois os ventos fracos também lá estavam.

Depois de vários dias, finalmente as condições meteorológicas melhoraram. A flotilha dos VO65 avançou mais para o oeste do que a dos Imoca, e com o Wind Whisper (Polônia) aparecendo a mais de 70 milhas (129,6 km) a oeste do segundo colocado, o Mirpuri/Trifork, e do Jajo em terceiro. O desafio para o skipper do Wind Whisper, o neozelandês Daryl Wislang, era a decisão do momento de mudar a rota de oeste para sul depois da Baía da Biscaia.

Após dias de luta para reparar os danos sofridos na colisão com o Guyot environnement, o 11th Hour Racing Team deixou o porto em Haia, não para competir na etapa 7, mas para dar andamento ao protesto apresentado ao júri e estar presente na despedida da The Ocean Race. Também para participar do encerramento dessa regata de volta ao mundo, o skipper Benjamin Dutreux, do Guyot environnement, que abandonara a regata, decidiu pegar um avião para Gênova. “Passamos os últimos seis meses com todas as outras equipes. Temos esse vínculo agora. Nossa equipe estará em Gênova para receber os demais. Esta é uma história humana e queremos estar lá para compartilhar isso”, justificou o capitão.

Seguindo para o sul, rumo ao Estreito de Gilbraltar, os VO65 (que largaram antes dos Imoca) ainda estavam na dianteira junto à costa de Portugal, com o Wind Whisper, que conseguiu encontrar bons ventos antes dos demais, já 70 milhas (130 km) à frente.

Os Imoca tiveram dificuldades de alcançar os VO65 porque as condições de ventos fracos não permitiram o melhor desempenho dos hidrofólios. Contudo, tanto para os cinco VO65 quanto para os três Imoca disputando esta sétima etapa, foi um grande desafio escolher uma rota para o sul com vento suficiente para manter o barco em movimento constante. Enfim, teve vantagem quem foi mais para oeste.

Na flotilha Imoca, o Holcim-PRB trabalhou duro para manter a liderança, já o Biotherm e o Malizia estavam se beneficiando da posição mais a oeste: o primeiro, apenas 10 milhas (18,5 km) atrás; e o segundo, cerca de 33 milhas (61 km).

Depois do Estreito de Gilbraltar, o Wind Whisper conseguiu 24 horas de vantagem, escapando definitivamente do restante dos veleiros — os perseguidores mais próximos estavam 150 milhas (278 km) atrás! No Mediterrâneo, os ventos enfraqueceram, e a quase calmaria também atingiu os demais barcos, que teriam ainda de enfrentar a corrente de maré desfavorável no Estreito de Gibraltar, e não só...

Orcas em Gibraltar

As equipes dos VO65 Jajo e Mirpuri/Trifork relataram terem sido atacadas por orcas no dia 23 de junho por volta das 14h50 UTC. Não houve feridos ou danos aos barcos, apesar de as orcas os acompanharem agressivamente e, pelo menos em um caso, batendo seus enormes corpos no casco e cutucando ou mordendo os lemes.

“Três orcas vieram direto a nós e começaram a bater nos lemes. Impressionante ver as orcas, animais lindos, mas também um momento perigoso para nós como equipe. Baixamos as velas e reduzimos a velocidade do barco o mais rápido possível; felizmente, depois de alguns ataques, elas foram embora… Foi um momento assustador”, relatou o skipper do Jajo, Jelmer van Beek, logo após o incidente.

A área ao redor de Gibraltar está se tornando bem conhecida pelo que alguns chamam de “ataques de orcas” a barcos (leia a respeito aqui). Felizmente para os barcos da The Ocean Race, os encontros com as orcas foram breves e relativamente benignos —embora assustadores, não ocasionaram danos.

Ainda na aproximação para Gibraltar, o Holcim-PRB liderava os Imoca, mas corria o risco de perder milhas para o Malizia, posicionado mais ao sul e ameaçando igualmente o Holcim-PRB e o Biotherm. Os ventos fracos e um tanto inconstantes estava afetando o moral das tripulações. “Tem sido muito cansativo”, admitiu Jorden van Rooijen, tripulante do Jajo. “No caminho para Gibraltar, lutamos contra o Mirpuri/Trifork a noite toda. Eles estavam apenas sete milhas (13 km) atrás e pressionaram um pouco, nos ultrapassaram numa batalha superacirrada, a um barco de distância, e agora estão bem na nossa frente... Então temos que recuperar a nossa posição!”, contou.

Quando todos os competidores já estavam no Mediterrâneo, a disputa se espalhou da Europa à África. O Wind Whisper navegava ao norte do continente africano e ainda liderava a VO65 Sprint, com mais de 100 milhas (185 km) à frente do Mirpuri / Trifork e do Jajo, que, entretanto, estavam obtendo ganhos significativos pela primeira vez, ao preferirem se aproximar da costa da Espanha.

“Estivemos numa verdadeira match racing com o Jajo. Eles nos atacaram muito, e nós nos defendemos, mas com isso deixamos a equipe Viva México nos alcançar. Então ficou basicamente uma competição entre três VO65. A regata é do Wind Whisper, mas temos uma boa batalha aqui atrás”, comentou Dave Swete, tripulante do Mirpuri / Trifork.

Entre os Imoca, Holcim-PRB, Biotherm e Malizia revezaram-se na liderança da flotilha, com distância de menos de 10 milhas (18,5 km) do primeiro ao terceiro. Todos os barcos completaram a volta ao mundo ao passarem por Alicante (Espanha), porém o final da The Ocean Race 2022-23 seria em Gênova, 600 milhas adiante.

Enquanto, já no porto italiano, a equipe do Wind Whisper saboreava sua vitória na classe VO65, as outras sete competidoras ainda lutavam contra ventos fracos para chegar.

Na classe Imoca, o líder Holcim-PRB, depois de aproveitar alguns ventos fortes na costa da França, viu-se às voltas com ventos de apenas 5 nós (9 km/h) quando faltavam apenas 100 milhas (185 km) para a linha de chegada! A bordo do Biotherm, que vinha atrás, o skipper Paul Meilhat ponderou: “Realmente complicado daqui até a linha de chegada. Alguns podem escolher a costa, outros o mar aberto...” Já o Malizia, que vinha em último lugar entre os Imoca, teve a esperança renovada pelos ventos fracos, que, afinal, definiram os resultados de ambas as classes.

Após a chegada, as equipes ainda se enfrentaram na última das regatas curtas (In-Port Races) disputadas em cada escala da The Ocean Race, no sábado, 1º de julho, mas que não teve influência no resultado geral da volta ao mundo.