Salve, Kirsten!

Kirsten: no rosto, a felicidade pela vitória e por um merecido sorvete, ao fim de 235 dias sozinha no mar. Foto: GGR 2022

Sozinha,

ela venceu 15 velejadores

Por Roberto Negraes

Kirsten Neuschäffer é a campeã da desafiadora Golden Globe Race

Única mulher entre 16 navegadores solitários, a sul-africana Kirsten Neuschäffer deu um show de resistência e determinação para vencer a Golden Globe Race 2022 (GGR2022). É a primeira vez em que uma velejadora ganha uma regata de volta ao mundo em solitário, e justamente a mais difícil delas!

Aproximando-se com vento muito fraco, o barco Minnehaha comandado pela a velejadora foi saudado calorosamente por dezenas de embarcações ainda a algumas milhas de distância da chegada, em Les Sables d’Olonne, na França, no fim da tarde do dia 27 de abril.

A GGR2022 foi disputada sob as mesmas regras e utilizando os mesmos equipamentos permitidos na ancestral Golden Globe Race, realizada em 1968 (a primeira regata de volta ao mundo): barcos de projeto e construção daquele tempo, sem GPS ou quaisquer auxílios eletrônicos ou mesmo elétricos para a navegação, exceto rádio SSB. Por motivo de segurança, apenas o epirb foi permitido a bordo.

O Minnehaha cruzou a linha de chegada às 21h43min47s (horário local), após uma longa aventura de 235 dias, 5 horas, 44 minutos e 4 segundos. O cálculo final ainda será revisto, porque Kirsten ajudou no resgate do finlandês Tapio Lehtinen, que vinha em terceiro lugar quando seu barco, o Asteria, naufragou repentinamente e sem causa conhecida no Oceano Índico, perto da Cidade do Cabo. A velejadora recebeu 24 horas de bonificação, além de desconto pelo combustível gasto pelo uso do motor durante a operação.

"O meu barco foi o meu companheiro de viagem. Conversei muito com ele. Até me irritei com ele, mas o amo muito. É um barco veloz, elegante, no qual trabalhei muito durante um ano. Tive vontade de vencer assim que me inscrevi na regata e fiz todos os meus preparativos de acordo. Eu queria vencer não como mulher. Não queria estar em uma categoria separada, mas competir em igualdade de condições com todos os navegadores homens. Não pensei no futuro a longo prazo, mas agora pretendo fazer longas caminhadas no deserto com meu cachorro”, declarou Kirsten.

E como foi a GGR2022? Como aconteceu na regata original, houve tempestades furiosas, encalhes, naufrágios, abandonos por tombamentos, mastros quebrados, lemes de vento avariados e até quebra de sextante. Dos 18 barcos que largaram, apenas cinco completaram ou estão perto do fim do percurso, o que valoriza ao extremo o desempenho de Kirsten, que esteve sempre entre os três primeiros lugares desde a Cidade do Cabo e foi a primeira a cruzar, em 15 de fevereiro, o Cabo Horn, o “bicho-papão” do mar.

O duelo

O grande rival da velejadora sul-africana e seu Minnehaha (um cúter Cape Cod CG36), foi o indiano Abhilash Tomy, oficial reformado da marinha do seu país, que teve mais sucesso nos doldrums (zona sujeita a calmarias e tempestades nas proximidades do equador) no retorno à Europa, e chegou a ficar com seu eslupe Bayanat (um Rustler 36) a apenas 25 milhas de distância de Kirsten. [Eslupes e cúteres são veleiros de um único mastro; num cúter, porém, o mastro fica mais à ré, permitindo içar duas velas de proa e não apenas uma, como num eslupe].

A história de Abhilash, que terminou esta volta ao mundo em segundo lugar, também é de incrível determinação. Ele que, perto do Horn, enfrentou uma das mais fortes tempestades desta competição, tem em seu histórico um naufrágio na GGR2018, evento comemorativo dos 50 anos da regata original: além de naufragar, o velejador indiano sofreu quatro fraturas na coluna, precisando passar por várias cirurgias e fisioterapia, ao longo de um ano.

Na Baía da Biscaia (uma região notória por suas águas agitadas, entre o norte da Espanha e o sudoeste da França), o duelo entre a sul-africana e o indiano intensificou-se, mas a escolha de Abhilash de tentar uma rota mais para oeste não deu certo. Assim, Kirsten tomou a ponta para não mais perder.

Destaques

O inglês Simon Curwen, com seu veleiro Clara, foi outro que teve um desempenho fantástico, liderando a regata até próximo do Cabo Horn. Foi quando seu leme de vento (piloto automático é proibido na GGR) quebrou, obrigando-o a parar perto do Canal de Beagle. Pelas regras da GGR2022, quem faz qualquer tipo de escala, mesmo para emergência, deixa a classificação principal e passa a competir na, assim denominada, classe Chichester. De fato, Simon Curwen chegou a Les Sables d’Olonne algumas horas antes de Kirsten Neuschäffer, mas sagrou-se campeão apenas na categoria secundária.

As dificuldades e abandonos começaram ainda na descida do Atlântico. O primeiro a abandonar foi o inglês Guy deBoer, que encalhou numa praia rochosa das Ilhas Canárias. Seu barco foi salvo, mas depois de muitos dias de esforço e com sérios danos. Vários outros foram forçados a fazer uma escala na Cidade do Cabo para reparos, mas alguns não conseguiram continuar. Os problemas foram os mais diversos, até mesmo incrustação de cracas no casco, reduzindo drasticamente o desempenho, a ponto de abandonos por conta disso.

Um jovem determinado

O mais jovem participante da regata foi o americano Elliot Smith, com tal persistência diante das adversidades que chegou a ser chamado de o “novo Bernard Moitessier”, ou ainda, como se referiu a direção de regata, como “uma verdadeira fortaleza” pela vontade demonstrada. Seu barco sofreu danos em série, de velas rasgadas a importantes peças quebradas, que Elliot, de 27 anos, foi resolvendo sem aportar, sempre navegando.

Perto da África do Sul, o gurupés quebrou e ele conseguiu realizar o reparo, sem assistência, ancorado nas águas da Cidade do Cabo. Rumando para a Austrália, o gurupés quebrou novamente. Elliott iniciou os consertos com um plano: soltar o estai segurando o mastro com duas adriças do spinnaker e o estai de proa, encaixar um estai sobressalente, cortar a extremidade das extrusões do equipamento de rize, reajustá-lo com o placas e corrente na proa e desprezar completamente o gurupés. Para isso, precisou subir no mastro, mas com mar de ondas com mais de três metros, acabou se desequilibrando, deixando cair no mar ferramentas e o estai sobressalente. Não restou-lhe outra escolha senão abandonar, depois de muita luta.

Elliot Smith, após a primeira quebra do gurupés. Foto Simon McDonnel - FBYC

Naufrágios

Num dia perfeito, com mar calmo e navegação tranquila, de repente, Tapio Lehtinen, outro dos favoritos da GGR2022, percebeu que seu Asteria (um eslupe Gaia 36) estava se enchendo de água. Ele nem conseguiu descobrir o motivo, pois o barco afundou muito rápido. Só teve tempo de se refugiar no bote salva-vidas e acionar o epirb. Kirsten e Abhilash foram em socorro. Localizado por Kirsten, Tapio foi embarcado por um navio cargueiro.

Já no final da regata, ao sul do Atlântico, quando restavam apenas cinco participantes, o barco Puffin, do inglês Ian Herbert Jones, foi atingido por uma tempestade com ventos de 55 nós (102 km/h) e rajadas de até 90 nós (1,67 km/h)! Apesar de ter lutado muito, seu barco tombou várias vezes e ficou totalmente danificado. Com as costas machucadas, um corte na cabeça e ondas de 8 m, Ian não conseguiu jogar na água o bote salva-vidas, mas acionou o epirb e acabou resgatado também por um navio cargueiro quando a tempestade amainou um pouco. Para sua sorte, ele estava num local de intenso tráfego marítimo, e o socorro chegou rapidamente.

A corrida ainda não terminou

Restam dois participantes, ambos na categoria Chichester, ainda em meio à subida do Atlântico, rumando para a Baía da Biscaia: o austríaco Michael Guggenberger, com seu quetche (veleiro de dois mastros) Nuri (Biscay 36); e o sul-africano Jeremy Bagshaw, com o cúter Olleanna (OE32).