Como velhos marinheiros

Volta ao mundo

à moda antiga

Por Roberto Negraes

Partiu Golden Globe, uma regata realizada com sextantes e cronômetros!

A mítica Golden Globe Race, a primeira regata de volta ao mundo (e sem escalas), realizada em 1968 e vencida por sir Robin Knox-Johnston, está de volta, e nos seus antigos moldes: sem GPS, equipamentos eletrônicos nem auxílios meteorológicos. Os velejadores não podem usar nada além do que existia no ano da regata original, há mais de cinquenta anos. Somente barcos construídos antes ou até 1988 podem participar! Tudo exatamente como na precursora regata em circum-navegação solitária e sem parada.

A largada já ocorreu. Desafiando-se num sonho de audácia, navegando tal qual os velhos marinheiros — observando as estrelas, bebendo água da chuva e pescando para comer —, neste momento, os participantes seguem pelo Atlântico, perto da linha do equador.

Uma aventura para poucos

Apenas barcos construídos até 1988 participam da volta ao mundo Golden Globe 2022. Foto: Guy deBoer Team

Assim como a competição original, a Golden Globe 2022 é simples: os velejadores deixaram o porto de Les Sables d'Olonne (França), em 4 de setembro passado, e navegando sozinhos e sem realizar escalas, darão a volta ao mundo, passando pelos Grandes Cabos (Boa Esperança, Leeuwin e Horn), até finalmente retornar a Les Sables d'Olonne. Bem, pelo menos os que conseguirem completar a façanha. Na Golden Globe original, dos nove veleiros que partiram, apenas um conseguiu retornar ao ponto de partida. Adiante, contaremos um pouco dessa história.

Na versão atual da Golden Globe Race (GGR 2022), dos 23 navegadores e respectivos veleiros inscritos, houve sete baixas antes da partida. Apenas 16 puderam largar, porque os demais estavam fora do regulamento estabelecido pelos organizadores da competição.

Praticamente todos os barcos já deixaram para trás as Ilhas Canárias. Um abandonou: o Spirit, do americano Guy deBoer, um veleiro de série Tashiba 36, que encalhou em uma praia rochosa de uma ilha. O navegador nada sofreu, mas o resgate da embarcação será complicado.

Outro abandono foi do barco canadense Noha’s Jest, um veleiro Ruster 36, de Edward Walentunowicz (nascido na Polônia). Com problemas técnicos a bordo desde a largada, foi o primeiro a deixar a GGR 2022.

Outro velejador enfrentando problemas é Pat Lawless. Com infecção no joelho, ele segue tomando antibióticos que levou a bordo, determinado a continuar com seu veleiro Green Rebel, um Saltram Saga 36, quase igual ao Suhaili de Knox-Johnston (três pés maior).

No momento, a flotilha começa a se afastar da costa africana. Quem lidera é o inglês Simon Curwen, com o veleiro Clara (um Biscay 36). A seguir vêm a sul-africana Kirsten Neuschafer no comando do Minnehaha (um Cape George 36) e, depois, o finlandês Tapio Lehtinem, com o Asteria (um Gaia 36).

Os veleiros em ação neste evento único em conceito e regulamento são barcos de série (e sem modificações), de comprimento total entre 32 pés e 36 pés (9,75 m a 10,97 m), e devem ser comprovadamente projetos anteriores a 1988. Precisam ter quilha de comprimento total (“quillha falsa” ao longo de todo casco, acompanhando a quilha de fato), com leme preso ao seu bordo de fuga (o leme é um prolongamento da quilha na popa), como os antigos veleiros, construídos muito mais para resistência do que para velocidade.

Volta às origens

Em contraste com as atuais corridas oceânicas profissionais de elite, esta nova edição da mais famosa regata de circum-navegação traz de volta uma competição da “Era de Ouro” da vela. Um tempo em que a aventura tinha precedência sobre a vitória.

O único entre nove competidores a terminar (e vencer) a famosa e trágica Golden Globe, em 1969, foi o inglês Robin Knox-Johnston, com o Suhaili, um ketch (veleiro de dois mastros) de 32 pés, lento mas forte o suficiente para superar os Mares do Sul. O Suhaili foi construído inteiramente em madeira teca, e Knox-Johnston utilizou apenas um sextante, um cronômetro de corda e um barômetro para enfrentar as teóricas 30 mil milhas (55.560 km) do percurso.

Trazer de volta a Golden Globe Race e, portanto, a “Era de Ouro” da vela solo é celebrar o evento original, o vencedor, seu barco e essa conquista significativa e inédita no mundo. Uma homenagem aos corajosos marinheiros de outrora, que desafiavam o mar quase sem garantias de sucesso.

O desafio desta Golden Globe de 2022 é colocar novamente a aventura, e não a competição, como principal motivação para os navegadores.

Ousadia e tempero

A expectativa em termos de tempo de viagem é de aproximadamente 250 dias no mar, com os velejadores enfrentando as fortes tempestades dos Mares do Sul em seus pequenos barcos, em desafio mais pessoal do que contra os demais. “É para aqueles que ousam”, como diz sir Robin Knox-Johnston.

“Esta nova corrida Golden Globe é uma ideia maravilhosa. Por que sonhar e não realizá-la? É um desafio criado para tornar real o sonho de muitos velejadores", afirma Knox-Johnston, que é patrono do evento.

Don McIntyre, idealizador, criador e presidente da regata, explica por que recriou a Golden Globe:

“Meu sonho de velejar sozinho ao redor do mundo nasceu da inspiração adquirida ao seguir as viagens solo de Francis Chichester, Robin Knox-Johnston e Bernard Moitessier, e lendo sobre Chay Blyth, Blondie Hasler [Herbert Hasler] e outros da ‘Era de Ouro’ da vela solo. Foi um período emocionante!”.

Don McIntyre, que competiu, por sua vez, na primeira BOC Challenge (outra regata de circum-navegação dos velhos tempos), recorda, saudoso, de uma frase de Knox-Johnston sobre a parafernália tecnológica atual: “Isso tudo tira todo o tempero de aventura”. A Golden Globe 2022 definitivamente coloca o tempero de volta!

Como foi a Golden Globe original

Anunciada em março de 1968, a Golden Globe foi a primeira regata de veleiros ao redor do mundo. O fracasso da maioria dos competidores em completar o percurso e o suicídio de um deles tornaram a regata controversa, mas, mesmo assim, essa difícil volta ao mundo inspirou outras, até os dias de hoje, como a Vendée Globe.

A Golden Globe foi patrocinada pelo jornal britânico Sunday Times e não havia requisitos de qualificação. Os competidores tiveram permissão para largar a qualquer momento entre 1º de junho e 31 de outubro de 1968. Cada um escolhia a data para largar — não foi, portanto, como as regatas atuais, nas quais todos os veleiros largam ao mesmo tempo. Quem concluísse em menor tempo venceria, e receberia troféu e prêmio de 5 mil libras.

Mas não foi apenas sir Robin Knox-Johnston, o vencedor e único a completar a circum-navegação, quem deu muito que falar na Golden Globe original. O francês Bernard Moitessier, antes da regata, já tinha concluído uma volta ao mundo em companhia de sua esposa, com seu veleiro Joshua. E resolveu participar.

Então, com um tempo de navegação melhor que o do Suhaili ao passar pelo Cabo Horn, prestes a subir o Atlântico e eventualmente vencer, o francês decidiu que ele e o seu barco estavam tão integrados ao mar, em uma viagem épica única, e decidiu continuar em frente, decidido a mais uma volta ao mundo, desprezando o prêmio de 5 mil libras! Ele e seu Joshua, depois de completarem mais de dois terços do trajeto, terminaram se dirigindo para o Taiti, onde sua esposa o aguardava.

Moitessier não ganhou a Golden Globe, mas tornou-se um dos maiores ídolos dos fãs da vela oceânica, verdadeira lenda mundo afora! Seu livro O Longo Caminho conta a história de uma jornada espiritual tanto quanto uma aventura de navegação, e é considerado talvez o maior clássico da literatura de navegação.

O Joshua foi destruído, anos mais tarde, durante um furacão no Caribe, mas foi recuperado e está hoje num museu marítimo da França.

Knox-Johnston, como o único finalista, recebeu o troféu do Globo de Ouro e as 5 mil libras pelo tempo recorde de viagem. Ele continuou a navegar e circum-navegou o mundo outras três vezes. Foi nomeado cavaleiro (título de sir) em 1995.

O destino dos demais

Dos nove velejadores que começaram a Golden Globe, quatro desistiram antes mesmo de cruzar o Cabo da Boa Esperança. Entre os cinco restantes, Chay Blyth, que partira sem absolutamente nenhuma experiência em navegação, passou pelo Cabo da Boa Esperança antes de abandonar; Nigel Tetley afundou faltando apenas 1.100 milhas (2.037 km) para completar (e vencer) a regata. E temos ainda a história macabra de Donald Crowhurst, que, em desespero, tentou fingir dar a volta ao mundo para evitar a ruína financeira, permanecendo no meio do Atlântico enquanto os rivais competiam, com a ideia de voltar para a Inglaterra antes dos demais e, assim, vencer. Mas começou a demostrar sinais de doença mental em suas mensagens falsas pelo rádio, talvez pela culpa, e cometeu suicídio jogando-se no mar, depois de deixar uma carta.

O vencedor Robin Knox-Johnston, hoje um ícone da navegação, doou as 5 mil libras do prêmio para um fundo de apoio à família de Crowhurst, cuja triste história pode ser conhecida em livros (como The Strange Last Voyage of Donald Crowhurst, de Nicholas Tomalin e Ron Hall, publicado em 1970; e Uma Viagem para Loucos, de Peter Nicholls) e no filme Somente o Mar Sabe (de James Marsh), além do documentário Deep Water (de Louise Osmond e Jerry Rothwell’s).

Roberto Negraes