Hans Hutzle, navegador do Saravah

Hans, na Cidade do Cabo

Hans, na Cidade do Cabo

Emoção

desde antes da largada

Por Roberto Negraes*

Hans Hutzle conta como foi preparar e participar da Cape2Rio 2020 com o Saravah

Tudo começou quando Hans Hutzle e sua esposa, Teresa Karina, planejavam uma travessia do Atlântico depois de o veleiro Aventureiro 4, que estão construindo, ficar pronto (no final deste primeiro semestre). De início, quando Hans procurou o Pierre Joullié, do Saravah (veterano na Cape2Rio), não estava pensando em competir,tinha apenas a intenção de obter informações sobre a navegação na edição anterior da regata (conhecida internacionalmente como South Atlantic Race, pois nem sempre o destino de chegada é o Rio de Janeiro). Ele conta como foi o encontro:

“Eu tinha curiosidade de saber, do Pierre, como havia corrido a última edição. Durante a conversa, ele explicou que estava tentando montar uma tripulação para participar da Cape2Rio 2020, mas estava encontrando dificuldades. Conversa vai, conversa vem, ele propôs que se eu fizesse parte da tripulação, ele iria participar com o Saravah! Embarquei na hora, com a promessa de, se ao final da regata ainda não tivéssemos brigado (o convívio a bordo é sempre complicado), na próxima regata iríamos juntos no meu barco”.

Mas não foi fácil compor o restante da tripulação:

“Na verdade, foi complicado, pois estaríamos rachando os custos da regata, que não são poucos, pois é necessário preparar bem o barco para atravessar o Atlântico duas vezes (ida à África do Sul e retorno durante a regata), uma empreitada que dura dois meses. Era necessário atualizar algumas velas do barco, equipamentos de segurança, cobertura de seguro internacional com participação em regata, skipper e tripulação para levar o barco, e muito mais!”

Finalmente, eles conseguiram fechar a tripulação com seis integrantes, o mínimo que haviam estabelecido. Mas então surgiu outro problema:

“Foi quando esbarramos no seguro internacional, pois está havendo uma debandada de seguradoras do mercado brasileiro. Conseguimos uma proposta com uma seguradora, mas a cobertura contra terceiros não atingia o valor mínimo exigido pelo Aviso de Regatas (organização da Cape2Rio). Tentamos todos os caminhos no Brasil e até mesmo alguns no exterior, sem sucesso... Até que conseguimos uma proposta para complementar a cobertura por meio de uma seguradora na África do Sul, mas seria exigido algum vínculo do barco com aquele país. Embarcamos então um velejador sul-africano muito experiente e que iniciou duas fundações de apoio a jovens que tentavam a carreira da Marinha Mercante. Uma dessas fundações iria ser o nosso vínculo. Na véspera da partida do barco ao Brasil, a seguradora brasileira inexplicavelmente voltou atrás da proposta que ela havia dado por escrito, e o barco ficou sem cobertura!!! Mais algumas semanas de vai e vem e conseguimos, por intermédio do nosso tripulante sul-africano, a cobertura total por aquele país! Uma novela que quase cancelou nossa participação!”

Hans conclui dessa experiência que “é necessário o pessoal do meio náutico fazer um trabalho junto às seguradoras nacionais, pois os proprietários de embarcações estão com muita dificuldade até para renovar seguros de muitos anos!”

A viagem à Cidade do Cabo

O Saravah chegando à Cidade do Cabo. Foto: Alec Smith - Divulgação

O Saravah chegando à Cidade do Cabo. Foto: Alec Smith - Divulgação

Hans discorre sobre a primeira travessia do Saravah, viajando para a Cape Town (Cidade do Cabo, África do Sul) para aguardar a largada da Cape2Rio 2020:

“O barco fez uma dura travessia do Rio a Cape Town descendo até a latitude dos 40 Bramadores (em inglês, “Roaring Forties”, onde predominam ventos fortes). Já próximo à África, o motor teve entrada de água nos cilindros e ficou inutilizado. Então, as duas semanas que o barco teria para se preparar para a regata em Cape Town desapareceram, pois foram transformadas em duas semanas de trabalho intenso com mecânicos. Até dois dias antes da partida, o interior do barco estava todo desmontado, sem paneiros, uma zona! Em certos momentos, duvidamos até se conseguiríamos partir!”

Como foram os preparativos para a navegação em si?

“Eu consegui GRIBs (arquivos eletrônicos meteorológicos) históricos dos últimos sete anos”, conta Hans, “e rodei centenas de simulações para entender as diversas opções e o comportamento do tempo. Baixei cartas eletrônicas da costa africana e do Atlântico e estudei portos alternativos. E sendo mais específico quanto à minha preparação, desde o início o comandante Pierre Joullié pediu-me que assumisse a navegação. Foram então três meses de estudos intensos, comparando softwares de navegação e routing, configurações de computador, meios de comunicação, meteorologia histórica no trecho etc.”

E então, surpreendentemente, tudo ficou pronto:

“Aos 49min30 do segundo tempo tudo voltou pro lugar e conseguimos partir em primeiro! Sinceramente, fomos montando o barco ao longo da regata!”

A maior parte da tripulação não se conhecia, o que era uma preocupação em relação ao convívio durante praticamente um mês no espaço limitado da embarcação:

“Mas foi incrível, ao embarcarmos, parecia que éramos uma equipe de anos de convívio. O clima a bordo foi fantástico, com brincadeiras e piadas o tempo todo, enquanto trabalhávamos duro para manter o barco velejando sempre com a maior velocidade possível, e ainda fazíamos a manutenção exigida pelo barco numa travessia longa e dura como essa. Trocávamos de balão entre duas e cinco vezes por dia, sempre consertando os pequenos furos que depois poderiam fazer um deles abrir por completo (levamos seis e um deles rasgou de forma definitiva).”

Hans lembra das dificuldades na comunicação com a família:

“A vida de bordo é dura, com muito trabalho e pouco tempo para descansar, toma o nosso tempo. Contudo, depois de poucos dias a gente entra na rotina. Mas ficar afastado sem notícias da família é o mais difícil. Alguns dias ficávamos sem conseguir enviar ou receber qualquer tipo de comunicação!”

E por que isso?

“Tivemos sérias dificuldades de contatos durante a regata, talvez em parte causadas pela correria dos últimos dias, que nos impediu de fazer a sintonia fina do sistema a bordo. Acabamos baixando todos os GRIBs diretamente pelo software QTVLM quando com sinal celular (na preparação e até a primeira noite da regata) e depois, o PredictWind via IridiumGO, e então abrindo os arquivos no QTVLM para traçar as sugestões de routing e analisar as alternativas.”

Durante toda a regata, conta Hans que nunca tiveram uma avaria a bordo, apesar do mar difícil ao chegarem próximo da costa brasileira:

“Percebemos a formação do mau tempo antes dos avisos, e já estávamos nos posicionando para melhor enfrentá-lo. Quando os avisos oficiais começaram a chegar, alertando para a severidade das condições do Kurumi, preparamos o barco para tempo ainda pior, estivando e amarrando tudo. Decidimos passar ao norte da baixa pressão, evitando o pior da tormenta. Cruzamos ela a 1.500 milhas do centro da baixa, e ainda assim pegamos trinta horas de ventos constantes de 30 nós. Mas antes já tínhamos a experiência de mar forte, pois havíamos pego outra baixa com ventos acima de 40 nós!”

Uma surpresa inesperada (e desgastante):

“O curioso foi que no final do Kurumi o vento de repente morreu”, lembra Hans, “e passamos de 30 nós a zero, calmaria total, em cinco minutos! Aí ficamos boiando mais de um dia!”

Mal terminou a Cape2Rio 2020, Hans já pensa em novas aventuras marítimas:

“Os próximos desafios serão trazer o nosso novo barco, o Aventureiro 4, da França ao Brasil em junho, com a esposa, mas antes participando da regata Outremer Cup no Mediterrâneo. Depois... veremos!”

Nosso velejador virtual

 
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Foto: Arquivo pessoal

*Roberto Negraes é jornalista especializado em náutica e navegação, um dos pioneiros do setor. Em sua primeira participação numa regata virtual, conseguiu um 8º lugar numa das etapas da Volvo Ocean Race de 2008-09. Depois disso, passou a praticar e tornou-se o melhor brasileiro e participante do continente americano durante anos, vencendo etapas de regatas internacionais como a Velux Five Oceans em 2010, vencendo na categoria SO (sem equipamentos extras) uma Solitaire du Figaro, 2º lugar na Cap-Istambul de 2010, e terminando entre os Top 10 em 16 grandes eventos internacionais. Na Volvo Ocean Race de 2011-12, esteve em 2º lugar até a sexta etapa, infelizmente não deu sorte nas duas últimas pernas e finalizou em 5º lugar entre 330 mil participantes de 184 países. Depois disso, parou de competir desde 2012, mas retornou agora às regatas virtuais, participando inicialmente de regatas como testes, para adaptar-se (a tecnologia desenvolveu-se muito nos últimos anos).