Há 21 anos

Marcio Dottori, na partida do Guarujá rumo à África . Fotos: Arquivo Marcio Dottori

Uma aventura

oceânica

Travessia solo do Atlântico Sul, um capítulo importante na vida do criador do Minuto Náutico

5 de dezembro de 2019. Hoje, o Marcio Dottori, criador e diretor do Minuto Náutico, comemora 21 anos do início da maior realização náutica de sua vida. Na tarde desse dia, em 1998, ele soltou as amarras da marina Pier 26, no Guarujá, no litoral paulista, rumo à África do Sul, para tornar-se o primeiro brasileiro a realizar essa travessia de ida e volta pelo Atlântico Sul sozinho a bordo de um veleiro.

Sob uma chuva fina e à vista dos familiares e amigos próximos, Marcio partiu no Carapitanga, um veleiro Aladin 30, projeto do escritório de Roberto de Mesquita Barros, o Cabinho. O único “tripulante” a bordo era o leme de vento Áries, um piloto automático mecânico extremante confiável, que pertencera ao veleiro Rapa-Nui, de Amyr Klink. O equipamento foi emprestado de outro velejador, Júlio Fiadi, a pedido do próprio Amyr, que o recomendou, ou melhor, praticamente o impôs ao Marcio.

Nos primeiros cinco dias de viagem, por estar em uma rota de navios, nosso velejador não dormiu. Vencida essa etapa, chegou a ter oito horas de sono quase ininterrupto. Mas, ao se aproximar da latitude 40 graus Sul, as coisas mudaram novamente. Marcio já sabia o tipo de perrengue que enfrentaria, a bem dizer, desde quando, aos 17 anos, encantou-se com a história do argentino Vito Dumas, que deu a volta ao mundo sozinho em um ketch (barco a vela de dois mastros) de 31 pés, pelo paralelo 40°S, passando pelos principais cabos do hemisfério: Boa Esperança, Leeuwin e Horn. Daquela época, em 1942, diz-se que os homens eram de ferro e os barcos, de pau. Os únicos instrumentos de navegação utilizados por Dumas foram um sextante, uma bússola e um cronômetro. Após essa viagem épica, ele escreveria Los Cuarenta Bramadores, livro cujo título é uma referência aos fortíssimos ventos das altas latitudes do Sul e que inspirou inúmeros navegadores modernos, incluindo o Marcio Dottori, a se lançarem ao mar.

Para aportar no seu destino, a Cidade do Cabo, Marcio velejou 32 dias e meio sem parar, tendo como companhia apenas o rádio HF/SSB, pelo qual se comunicava com o Iate Clube do Rio de Janeiro e com o serviço La Rueda de los Navegantes, que lhe passava a previsão do tempo. Isso, até metade do percurso, porque o rádio quebrou quando Marcio caiu por cima dele, num tombo em consequência de uma grande onda que fez o barco adernar violentamente sob duríssimas condições de mar, com rolões de água estourando sob ventos com rajadas de força 7 (cerca de 35 nós ou 65 km/h), que por três dias castigaram o Carapitanga. O navegador recorda: “Nessas condições, você não consegue ficar em pé no barco, tem que engatinhar e, no convés, tem que usar linha de vida, ligada a um cabo preso na proa e na popa. O barco vira um cavalo bravo tentando te jogar fora da sela e, lá fora, o frio é extremo”. O Carapitanga, cuja velocidade normal era 5 nós, chegou a descer ondas a 12 nós.

Nessa etapa da viagem, o Carapitanga registrou uma média de singradura (distância percorrida em 24 horas) de 113 milhas. Em termos de velocidade, significa 4,7 nós ou 8,7 km/h. Dos três GPS que inicialmente equipavam o barco, restou apenas um. Quando o segundo aparelho quebrou, Marcio tratou de recordar rapidamente suas lições de navegação astronômica e passou a usar o sextante. O radar foi muito útil para desviar dos navios pelo caminho e o leme de vento confirmou sua fama: “Valeu por dois tripulantes”, garante o velejador.

Na Cidade do Cabo, onde o barco chegou com uma trinca no mastro, Marcio encontrou-se com os amigos velejadores Crespo (Edson Willie Pinto) e Howlie (Raul Gugelmin Pereira Jorge), e conheceu o skipper uruguaio Henry Irla e o argentino Guillermo Rodríguez, do veleiro Charran, criado por Manuel Campos, que projetou o barco de Vito Dumas, Lehg II, hoje no Museu Naval Argentino. Da passagem pela linda capital da África do Sul, Marcio traz ótimas lembranças, exceto uma: num descuido, quando quis pegar um atalho até a cidade, foi atacado por cinco homens ao passar bem no meio de uma favela e acabou levando uma facada no antebraço esquerdo que, depois de levar vários pontos, continuou doendo a ponto de não deixá-lo dormir durante muitos dias no começo da volta ao Brasil.

O retorno, porém, foi tranquilo. Dessa vez, foram 37 dias de navegação, com uma parada de um dia na ilha de Trindade (na altura de Vitória), onde Marcio desembarcou e foi nadando, em águas sabidamente frequentadas por tubarões, munido com um lança-arpão. Se na ida o Carapitanga ficou sem rádio, na volta, teve o auxílio luxuoso de um telefone satelital Iridium, então uma supernovidade, que mostrou-se extremamente útil. Foi por ele que Marcio pediu permissão a Brasília para desembarcar em Trindade, que é uma base meteorológica da Marinha, onde foi muito bem recebido.

No livro Aventura no Atlântico Sul, Marcio Dottori relata toda essa viagem, até o encontro com outros Aladin 30, numa recepção prévia preparada pelo projetista Cabinho, na altura da Ponta da Joatinga (costa sul do litoral fluminense), de onde todos seguiram para o Guarujá. “Eles me receberam com uma cerveja gelada, a melhor da minha vida”, lembra, com gratidão, o Marcio.