Memórias

O mar

e seus viajantes

Por Roberto Negraes

Fotos: Arquivo pessoal (Roberto Negraes ao leme do Ondazul, num curto passeio com amigos, por isso o bote de apoio sendo rebocado).

Fotos: Arquivo pessoal (Roberto Negraes ao leme do Ondazul, num curto passeio com amigos, por isso o bote de apoio sendo rebocado).

Uma crônica sobre os incontáveis caminhos marítimos, meus dias navegando ou mergulhando, os encontros com veleiros maravilhosos e a amizade com seus ousados comandantes, e como era bom dormir no balanço das ondas...

Eu caminho na noite sem lua, em praia deserta, lanterna nas mãos. Meus pés estão dentro d'água, e ando lentamente, até o feixe da lanterna encontrar dois grandes olhos, misteriosos senão curiosos, encarando-me com estranheza. A transparência, cristalina, é do Caribe. Observo aquele olhar, parece suspenso no nada, tão límpido o mar; apenas um instante depois entendo, está no corpo de uma lula absolutamente imóvel, perto da superfície. De algum modo sinto empatia por aquele estranho ser marinho. Ambos estamos solitários, e curtimos o mesmo instante e habitat, encarando-nos, mutuamente, com curiosidade.

Sou garoto e adoro pescar. Corro para o mar santista com minha varinha de pesca, e sempre trago quitutes para casa. Minha mãe limpa e prepara, pacientemente, e então frita, os pequeninos pampos, pescadinhas e outras espécies deliciosas para a orgulhosa criança que buscou sua comida.

Um dia de travessia em veleiro de amigos. Foto antiga em cromo (slide) infelizmente convertida com scanner de mesa, de baixa qualidade e resolução. Aliás, todas as fotos desta matéria são sobreviventes sofridos de mais de 40 anos, e assim não tem gr…

Um dia de travessia em veleiro de amigos. Foto antiga em cromo (slide) infelizmente convertida com scanner de mesa, de baixa qualidade e resolução. Aliás, todas as fotos desta matéria são sobreviventes sofridos de mais de 40 anos, e assim não tem grande qualidade. Na foto, eu deveria estar por volta dos 40 anos (tenho cabelos brancos desde os 30!)

Adulto, adoro ficar ao leme de meu veleiro, principalmente nos dias quentes de verão, com a brisa suave da tarde nos levando, silenciosamente, até alguma ilha próxima. Lançar a âncora, unhar com segurança, mergulhar para pescar a janta e passar a noite dormindo no balanço aconchegante que só o mar e o colo dos pais, em criança, nos poderiam oferecer.

Houve um tempo em que eu enjoava ao desembarcar. No mar, nunca enjoei.

Recordo do doutor Manuel, médico que me tratou e se afeiçoou à criança que ajudou a curar de uma doença séria, presa na cama, por mais de ano. Quando tive alta, aos nove anos de idade, ele convidou-me para pescar em seu bote de alumínio, junto com sua turma de amigos. Foi minha estreia num barco. O pequeno bote geralmente ficava oscilando sobre o ricochete das vagas, junto de alguma costeira externa das ilhas. Eu nunca queria ir embora, pois era sempre quem pescava mais peixes, e o mar era tão amigo! O doutor e seus amigos adultos não se conformavam, como é que o garoto sempre pesca mais peixes e o maior? E por que as ondas me tratavam bem, enquanto eles, vez por outras, mesmo tomando Dramin, vomitavam (ajudando, de certa forma, a cevar os peixes)?

Um dia, pensaram ter descoberto meu segredo. Esqueci uma jaqueta no armário da marina onde guardavam o bote. O doutor a trouxe de volta para casa, em São Paulo. Por algum acaso e família religiosa, eu havia guardado no bolso uma pequena imagem de Nossa Senhora de Aparecida. Daquele dia em diante, nunca saíram para o mar sem levar, igualmente, uma imagem santa no bolso. Contudo, enquanto saí com eles, continuei sempre na "liderança", caso se possa dizer assim, da pescaria. O verdadeiro segredo era ter o mar como amigo.

Aprendi a mergulhar, em apneia, aos 20 anos de idade. Desde então, visitava o fundo do mar todos os fins de semana e férias. E desse modo, sempre tive algum veleiro ou lancha, ou ambos. Em Fernando de Noronha, em 1974, conheci um grupo de amigos também adoradores do mar. Entre eles, o Helio Setti Jr. A amizade se estendeu além da ilha, foram muitas as conversas sobre os segredos das águas. Ele costumava ficar hospedado, vez ou outra, em casa, lá em Ubatuba. Saíamos, com outros amigos, na minha pequena lancha catamarã equipada com motor de 15 hp. Eu gostava de fotografar o fundo do mar (fui fotógrafo profissional como jornalista), assim ele me apelidou de "Zé Kodak".

O Ondazul prestes a cruzar, rumo à Ilhabela, a famosa e temida Ponta da Joatinga, onde termina (ou começa) a baía da Ilha Grande (do lado oeste, ao largo de Parati

O Ondazul prestes a cruzar, rumo à Ilhabela, a famosa e temida Ponta da Joatinga, onde termina (ou começa) a baía da Ilha Grande (do lado oeste, ao largo de Parati

Quanto partiu para sua volta ao mundo, no veleiro Vagabundo, eu tinha uma traineira de 12 metros, a Igaruçu, montada como os chamados trawlers americanos, muito confortável em seu interior. Não, não era nem tinha nada a ver com um barco de pesca. Naquela época, eu levava os alunos de um curso de mergulho equipado, ministrado por uma loja em São Paulo, para batismo de mergulho e passeios sob as águas da baía da Ilha Grande. Certo dia, por acaso, viajei com a Igaruçu para o Saco da Ribeira, em Ubatuba, onde faria manutenção. Ao chegar, ouço no rádio a voz inconfundível do Hélio. Chamei, "onde você está?". "Ah, cheguei da volta ao mundo, estou com o Vagabundo ancorado na Ilha Anchieta, só vou para terra amanhã, o povo quer fazer uma festa me recepcionando. O pior é esperar aqui sem cerveja", reclamou com um tom de esperança.

E sua indireta deu resultado; apesar do mau tempo, chuva e sudoca, fui até lá, ancorei ao lado do Vagabundo pelo meio dia, e logo estava a bordo com um engradado de cervejas (12 garrafas). Não paramos de conversar até as 23 horas, e lembro que ele não se conformava, “fiquei vagabundeando dando a volta ao mundo por dois anos e os caras me recebem como herói!”. Noite escura como breu, chuva, e como acabara a cerveja e o Hélio precisava estar em forma para a recepção no dia seguinte, retornei ao Saco da Ribeira. O mar sempre foi meu amigo, pois acordei de manhã com a Igaruçu presa à poita. Em seu livro póstumo, Aventura no Mar — Andanças, amores e peripécias de um velejador boa praça, o Hélio recorda este nosso encontro, referindo-se como “a cervejada com o Zé Kodak”. Uma pena não ter encontrado fotos nossas (lembro que tinha várias, analógicas), afinal, nossa amizade foi perto de 50 anos passados, e as imagens já se perderam com o tempo).

Um dos encontros com o Amyr Klink, esta vez para um trabalho bem humorado realizado para um site náutico que eu mantinha. Quem fotografou foi a Marina, esposa do Amyr

Um dos encontros com o Amyr Klink, esta vez para um trabalho bem humorado realizado para um site náutico que eu mantinha. Quem fotografou foi a Marina, esposa do Amyr

Tempos depois, sentei ao lado de um cara com um projeto aparentemente maluco, num grupo de pessoas durante um dos primeiros Rio Boat Show, de vir da África para o Brasil remando num pequeno barco. A cerveja animava a conversa. Quando ele contou detalhes do plano, não achei tão maluco (“capaz de dar certo”, pensei). Foi assim que conheci o Amyr, e acompanhei suas viagens. Aliás, anos depois eu construía um veleiro de aço no mesmo estaleiro onde ele terminava a construção do Paratii em alumínio. Também nos encontramos muitas vezes, e fiz reportagens sobre suas aventuras (que ele detestava que chamassem de "aventuras"). Amyr nunca foi de fazer ou cultivar muitos amigos, mas sempre nos demos bem por um ponto em comum, o mar.

Bons tempos nos idos dos anos 80/90. Não me recordo se esta foto foi tirada antes ou depois da viagem do Rapunzel. Estou à direita da foto, no centro o Marçal Ceccon e à esquerda um ex-comandante de aviação que passou para veleiros e estava de parti…

Bons tempos nos idos dos anos 80/90. Não me recordo se esta foto foi tirada antes ou depois da viagem do Rapunzel. Estou à direita da foto, no centro o Marçal Ceccon e à esquerda um ex-comandante de aviação que passou para veleiros e estava de partida para o Caribe.

No mesmo estaleiro, outro veleiro de aço estava sendo construído, e o nome me agradou: "Rapunzel". Um dia encontrei com seu proprietário, o Marçal Ceccon. Começamos uma amizade, fiquei ao par de seu projeto de volta ao mundo com a família, e várias vezes, antes dele e da Eneida, com os então jovens Marcelo e Clarissa, partirem, nós passeamos, em testes, com o Rapunzel. Acabei fazendo a foto de capa do primeiro livro destes amigos. E como trocávamos milagrosamente (pela posta restante, nunca sabendo se receberíamos ou não) correspondência durante a viagem do Rapunzel, fui juntando tudo o que o Marçal me contava, ajudando assim a formatar o primeiro livro publicado por ele.

Conheci levemente outros velejadores pioneiros, como o Sombra, entre outros, mas prefiro falar sobre as amizades. Aliás, uma delas eu tenho como a um irmão, somos amigos desde garotos, e acabei o levando para a Revista Náutica quando me afastei: o Márcio Dottori. Um dia ele contou que iria velejar até a África do Sul, com seu Carapitanga (leia sobre a viagem nesta matéria). Quando retornou, escrevi um capítulo para seu livro “Aventura no Atlântico Sul”. E sabendo de seu site sobre náutica, o Minuto Náutico, logo me ofereci para escrever matérias sobre o tema que me fascina há alguns anos: as grandes regatas oceânicas. Escrever sobre elas, entrevistar o pessoal da vela, contar a história das regatas oficiais (oficiais) são atividades que realmente me proporcionam uma certa alegria.

O meu Ondazul, num passeio com amigos a bordo, pela baía da Ilha Grande. Meu filho, ainda criança, como sempre, empoleirado no pulpito de proa. Adorava ficar lá com o barco ancorado ou velejando! rs

O meu Ondazul, num passeio com amigos a bordo, pela baía da Ilha Grande. Meu filho, ainda criança, como sempre, empoleirado no pulpito de proa. Adorava ficar lá com o barco ancorado ou velejando! rs

Morei seis anos num veleiro, mas apenas junto de nossa costa de sudeste, passando um ano em Parati, um ano em Ilhabela, seis meses em Angra dos Reis e outros lugares, velejando e conhecendo cada ilha ou simplesmente curtindo o vento. Explico. A construção de meu veleiro de 38 pés, de aço, acabou se tornando um pesadelo quando estava quase pronto. Coisas da vida. Fiquei sem condições de terminá-lo, perto do final da construção, e sem dar a minha volta ao mundo, como os amigos fizeram. Por fim, para não perder tudo, vendi o barco para um arquiteto, e este me passou, como parte do pagamento, um veleiro Sud 27.5, uma embarcação pequena e frágil, pois o Ondazul fora construído tendo em mente regatas. Felizmente, tinha no interior pé direito suficiente para minha altura (sou baixo, então ficava em pé dentro da cabine, rs).

Por alguns poucos anos, escrevi e testei barcos para as revistas Náutica, Offshore e outras. Agora, aposentado e com mais de 70 anos, vivo longe do mar. Contudo, pelo menos moro nas montanhas da Serra do Mar, sobre Parati e Ubatuba, e sinto-me perto do verdadeiro lar. E não preciso sentir saudades da água salgada. Acho que fui contaminado em criança, e tenho um pouquinho dela fluindo no sangue. Não fico frustrado: viajei acompanhando muitos amigos pelo mundo. Assim, o mar está comigo, mesmo aqui na serra. Velhos amigos podem seguir caminhos distintos ao longo da vida, mas a amizade verdadeira sempre dura, não é mesmo?

No saco da Ribeira, com a idade chegando, um dos ultimos passeios de veleiro (por volta de 2009)

No saco da Ribeira, com a idade chegando, um dos ultimos passeios de veleiro (por volta de 2009)

Como neto de imigrantes portugueses, decidi finalizar este texto com Fernando Pessoa:


Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.